Cinema, Magia & Esparguete
(Sugiro este western sound durante a leitura do texto abaixo)
«O cinema é a vida.» Anunciara Jean Renoir. «A vida é o cinema e o cinema é a vida». Prolongaria Godard. «A vida é uma combinação de magia e esparguete». Concluiria Fellini. E todos, em conformidade, a filmariam, em planos fechados, como que a guardar a vida em bobines, tal como cada um deles a via. No universo único que cada um criou e nos deixou habitar.
Lembro-me, cada vez com maior nostalgia, dos tempos em que o cinema tinha tal intensidade e em que a vida, por vezes, invadia os filmes. Vi isso suceder, há muito, no já desaparecido Cine-Mar, cinema-paraíso de um lugar chamado Caxinas, último reduto de um mundo genuíno, terra de pescadores resistentes que insistem na mentira de que Portugal é um país de marinheiros. Aí morava a tela que me deu a conhecer as primeiras emoções dos westerns, aos oito anos e em bicos de pés, para fazer de doze. Em matinées de magia e esparguete servidas após o almoço dos domingos.
A aventura começava, logo, no momento de tirar os bilhetes. Tarefa nada fácil para um público tão impaciente quanto indisciplinado. Chegar à bilheteira, um buraco aberto na parede de pedra, com trinta centímetros de diâmetro e à altura dos olhos de um adulto, era uma espécie de selecção natural de cinefilia. Estávamos, afinal, nas Caxinas, onde o conceito de fila, ou bicha, era muito próprio. Simplesmente porque não existia. Daí que uma hora antes da bilheteira abrir e logo à chegada do segundo candidato a espectador, já começava a confusão na formação da bicha. Que ia engrossando com o passar do tempo, transformando-se num espasmo sinuoso de candidatos em fúria, gastando a energia da puberdade em empurrões cegos e desordenados, que muitas vezes acabavam no chão. Os dois corrimões de ferro dispostos em perpendicular frente à bilheteira, símbolos teimosos da pedagogia da fila indiana, acabavam por servir de trampolim aos menos temerosos. Um salto certeiro de um metro, dali, quase garantia a entrada. Quase, porque às vezes, não. Aconteceu-me uma vez. Sobrevoar a turba, abeirar-me do buraco na parede, pedir um bilhete na geral, antecipar o pagamento e … já não conseguir trazê-lo.
Os nossos heróis das matinées do Cine-Mar chamavam-se Ringo, Sabata, Django ou Sartana. Todos eles adestradores de vacas e cavalos que depois se transformavam em pistoleiros, vingadores de todas as injustiças e patifarias dos maus. Índios, mexicanos, bandidos ou todos juntos. Para os putos dos bancos corridos da geral, as filas mais próximas da tela, cada um dos nossos heróis era conhecido simplesmente por Artista. A maior parte dos protagonistas eram actores italianos de segunda ordem, sem direito a sonhar com Oscars. Mesmo assim, para nós, faziam parte de uma mítica galeria de elegantes pistoleiros, onde, por exemplo, o mais famoso de Hollywood, John Wayne, nunca conseguiria ter assento por notória falta de pinta. (Muitos anos depois, já adultos, alguns de nós passaram a sentir uma grande mágoa na memória, quando um destes nossos ídolos, Franco Nero, foi apanhado a protagonizar um improvável papel num filme de Fassbinder.)
Geralmente, nos argumentos dos western spaghetti cabiam três partes. Tal como a exibição da fita, que tinha dois intervalos. Ou, mais precisamente, um «Intervalo» e um «Segue Imediatamente». Quando a fita estava de boa saúde, porque quando não estava, ou falhava a energia, poderia haver uma infinidade deles. Forçados. O que tornava ainda mais intensa a sessão, com os pedidos de devolução do dinheiro dos bilhetes por parte dos espectadores mais impacientes, ou mais apressados. Geralmente, pescadores com hora marcada na próxima maré. Claro que os protestos raramente eram pacíficos e ainda menos o eram para os responsáveis pela bilheteira e pela projecção, um e outro irmanados na culpa da interrupção. Valia-lhes, no entanto, a jurisprudência dos cortes no Cine-Mar, que forçara a gerência a instalar portas blindadas no acesso a estas duas secções.
Os filmes começavam com um grande plano sobre a pradaria. Idílica, nos seus campos verdejantes e coloridos de flores, nos riachos de águas mornas a serpentear por entre a paisagem límpida do vale, onde pastava o gado. Um longo traveling sobre o rancho mostrava-nos a casa de madeira com alpendre, uma espécie de loja-âncora das cowboyadas que já conhecíamos de matinées anteriores, sempre ladeada de muitas cercas e estábulos. Lembro-me particularmente das chaminés das casas, a deitar, quase sempre, fumo. E de me interrogar por que motivo se começava a filmar, quase sempre, à hora do almoço. Quanto ao Artista, encontrávamo-lo com a mesma felicidade ingénua do cenário. Algumas vezes, agarrado á namorada. Loira. Também conhecida por Gaja. Outras vezes, brincando com um cão. Grande, peludo, com propensão para a lambidela fácil, que passava o tempo a roer as latas de conserva de feijão, vazias, que eram o alvo preferido dos ensaios de tiro do nosso herói. Até ao «Intervalo», o argumento corria pachorrento, com a única chama da fogueira no deserto, a amparar os suspiros do Artista e da sua loira-metade. Na segunda parte, o filme já seria outro.
De repente, a carnificina. Os índios, os mexicanos, os bandidos, ou todos juntos, invadiam o vale e destruíam tudo. Cobardolas, aproveitavam-me da ausência temporária do Artista, que tinha ido à cidade tratar de assuntos importantes. Amortizar a hipoteca do rancho, abastecer mantimentos para o gado ou comprar um chapéu novo. Muito raramente, víamo-lo a comprar uma pulseira para a namorada. Entretanto, nas suas costas, as coisas iam ficando cada vez mais feias. Aliás e até ao «Segue Imediatamente», era mesmo duro de se ver. Os rufias não tinham contemplações. Abatiam o gado, pegavam fogo ao rancho, dizimavam a família toda, namorada incluída e, algumas vezes, até o cão. Assistíamos a tudo revoltados, mas também conscientes de que vingança seria terrível. Alguns de nós, mais inconformados com o desequilíbrio de forças, não hesitava em lançar-lhes umas quantas ameaças. «Filhos-da-puta, ides pagá-las!» E quando o Artista chegava ao local do massacre, já deserto de malfeitores, o Cine-Mar gelava com o silêncio. O pior, então, eram os enterros. Da família toda, da namorada e do cão. Este, de todos, o mais pungente, por causa da coleira que repousava sobre o montículo de areia que servia de sepultura. Nesta altura, na sala, ainda sobravam energias para um incitamento final. «Vai atrás desses cabrões e mata-os um por um!» Pedido que todos sabíamos que, lá mais para o final, seria satisfeito. Daí que a segunda parte do filme acabava com o nosso herói a treinar-se para a vingança, num qualquer local deserto, a sacar do seu Colt 45 e a atirar em tudo o que era pedregulho. Cada vez mais rápido e mais certeiro. Como todos nós lhe exigíamos.
Quando caía o «Segue Imediatamente», clone do «Intervalo» mas cinco vezes mais rápido, já poucos arriscavam ir às casas-de-banho. O gozo antecipado na viragem no enredo, parecia aliviar as bexigas da malta. Todos adivinhávamos que aquela meia hora final estaria reservada à apoteose da vingança. Do gado, do rancho, da família toda, da namorada e do cãozinho. E assim seria. Os bandidos, após mais uma olimpíada de saque e mortandade, estavam agora reunidos num novo rancho, entretanto também dizimado. Eram às dezenas, acompanhados pela sua própria trupe, mulheres incluídas. Tudo da pior estirpe, naturalmente. É a partir deste cenário que a alma dos espectadores do Cine-Mar irá iniciar a caminhada, degrau a degrau, a caminho dos céus. A câmara, até aí rastejante e a pulular entre os energúmenos, começa a subir a colina mais próxima. No cume, passa a apontar para o enorme vale deserto que se espraia defronte. Tudo a fingir passar-se, algures, no Utah ou no Colorado, mas na realidade filmado em Abruzzo. Visível, na tela, apenas um crescente novelo de poeira que se aproxima. Célere, a objectiva foca o objecto móvel, com clara intenção de tirar um grande plano. Quando o reconhecimento é feito, a geral do Cine-Mar dá um estrondo ao levantar-se como uma mola. «É ele!» A partir daqui, inicia-se o intercurso que levará ao clímax. O grande plano é agora tomado pelo trote poeirento daquela cavalgada vingadora, ao som do trompete e dos outros metais de Morricone. A vingança aproximava-se.
Alguns dos mais experientes espectadores aconselhavam calma ao pessoal da geral, que se sentava já a custo. O Artista começava a internar-se no covil dos bandidos, entretidos com a comida, a bebida, a música e as mulheres. Tudo numa fanfarronice dormente. Passam a ser atacados em surdina e, tal como alguém pedira na primeira parte, mortos um por um. Sufocados, esfaqueados ou garroteados. Só o som dos bombos, a tamborilar compassadamente, se atrevia a invadir o pesado silêncio que voltara a abater-se ali. Na tela e na sala. Tudo para não alertar os restantes bandidos. Mesmo assim, um deles, ovelha-ranhosa, solta um grito ao espernear. Os restantes rufias, já de sobreaviso, correm a transformar rapidamente o rancho num bunker. Só que isso não é obstáculo para o nosso herói. Que com estonteante rapidez e mestria no gatilho continua a eliminar os inimigos, às vezes dois por um. Também contando com a nossa ajuda, naturalmente. Como quando estava distraído a fuzilar um bandido encurralado no alpendre e não via um outro, em cima, que já o tinha em mira. Foi o aviso da malta da geral que o salvou, outra vez em uníssono. «Na chaminé!».
Lembro-me, cada vez com maior nostalgia, dos tempos em que o cinema tinha tal intensidade e em que a vida, por vezes, invadia os filmes. Vi isso suceder, há muito, no já desaparecido Cine-Mar, cinema-paraíso de um lugar chamado Caxinas, último reduto de um mundo genuíno, terra de pescadores resistentes que insistem na mentira de que Portugal é um país de marinheiros. Aí morava a tela que me deu a conhecer as primeiras emoções dos westerns, aos oito anos e em bicos de pés, para fazer de doze. Em matinées de magia e esparguete servidas após o almoço dos domingos.
A aventura começava, logo, no momento de tirar os bilhetes. Tarefa nada fácil para um público tão impaciente quanto indisciplinado. Chegar à bilheteira, um buraco aberto na parede de pedra, com trinta centímetros de diâmetro e à altura dos olhos de um adulto, era uma espécie de selecção natural de cinefilia. Estávamos, afinal, nas Caxinas, onde o conceito de fila, ou bicha, era muito próprio. Simplesmente porque não existia. Daí que uma hora antes da bilheteira abrir e logo à chegada do segundo candidato a espectador, já começava a confusão na formação da bicha. Que ia engrossando com o passar do tempo, transformando-se num espasmo sinuoso de candidatos em fúria, gastando a energia da puberdade em empurrões cegos e desordenados, que muitas vezes acabavam no chão. Os dois corrimões de ferro dispostos em perpendicular frente à bilheteira, símbolos teimosos da pedagogia da fila indiana, acabavam por servir de trampolim aos menos temerosos. Um salto certeiro de um metro, dali, quase garantia a entrada. Quase, porque às vezes, não. Aconteceu-me uma vez. Sobrevoar a turba, abeirar-me do buraco na parede, pedir um bilhete na geral, antecipar o pagamento e … já não conseguir trazê-lo.
Os nossos heróis das matinées do Cine-Mar chamavam-se Ringo, Sabata, Django ou Sartana. Todos eles adestradores de vacas e cavalos que depois se transformavam em pistoleiros, vingadores de todas as injustiças e patifarias dos maus. Índios, mexicanos, bandidos ou todos juntos. Para os putos dos bancos corridos da geral, as filas mais próximas da tela, cada um dos nossos heróis era conhecido simplesmente por Artista. A maior parte dos protagonistas eram actores italianos de segunda ordem, sem direito a sonhar com Oscars. Mesmo assim, para nós, faziam parte de uma mítica galeria de elegantes pistoleiros, onde, por exemplo, o mais famoso de Hollywood, John Wayne, nunca conseguiria ter assento por notória falta de pinta. (Muitos anos depois, já adultos, alguns de nós passaram a sentir uma grande mágoa na memória, quando um destes nossos ídolos, Franco Nero, foi apanhado a protagonizar um improvável papel num filme de Fassbinder.)
Geralmente, nos argumentos dos western spaghetti cabiam três partes. Tal como a exibição da fita, que tinha dois intervalos. Ou, mais precisamente, um «Intervalo» e um «Segue Imediatamente». Quando a fita estava de boa saúde, porque quando não estava, ou falhava a energia, poderia haver uma infinidade deles. Forçados. O que tornava ainda mais intensa a sessão, com os pedidos de devolução do dinheiro dos bilhetes por parte dos espectadores mais impacientes, ou mais apressados. Geralmente, pescadores com hora marcada na próxima maré. Claro que os protestos raramente eram pacíficos e ainda menos o eram para os responsáveis pela bilheteira e pela projecção, um e outro irmanados na culpa da interrupção. Valia-lhes, no entanto, a jurisprudência dos cortes no Cine-Mar, que forçara a gerência a instalar portas blindadas no acesso a estas duas secções.
Os filmes começavam com um grande plano sobre a pradaria. Idílica, nos seus campos verdejantes e coloridos de flores, nos riachos de águas mornas a serpentear por entre a paisagem límpida do vale, onde pastava o gado. Um longo traveling sobre o rancho mostrava-nos a casa de madeira com alpendre, uma espécie de loja-âncora das cowboyadas que já conhecíamos de matinées anteriores, sempre ladeada de muitas cercas e estábulos. Lembro-me particularmente das chaminés das casas, a deitar, quase sempre, fumo. E de me interrogar por que motivo se começava a filmar, quase sempre, à hora do almoço. Quanto ao Artista, encontrávamo-lo com a mesma felicidade ingénua do cenário. Algumas vezes, agarrado á namorada. Loira. Também conhecida por Gaja. Outras vezes, brincando com um cão. Grande, peludo, com propensão para a lambidela fácil, que passava o tempo a roer as latas de conserva de feijão, vazias, que eram o alvo preferido dos ensaios de tiro do nosso herói. Até ao «Intervalo», o argumento corria pachorrento, com a única chama da fogueira no deserto, a amparar os suspiros do Artista e da sua loira-metade. Na segunda parte, o filme já seria outro.
De repente, a carnificina. Os índios, os mexicanos, os bandidos, ou todos juntos, invadiam o vale e destruíam tudo. Cobardolas, aproveitavam-me da ausência temporária do Artista, que tinha ido à cidade tratar de assuntos importantes. Amortizar a hipoteca do rancho, abastecer mantimentos para o gado ou comprar um chapéu novo. Muito raramente, víamo-lo a comprar uma pulseira para a namorada. Entretanto, nas suas costas, as coisas iam ficando cada vez mais feias. Aliás e até ao «Segue Imediatamente», era mesmo duro de se ver. Os rufias não tinham contemplações. Abatiam o gado, pegavam fogo ao rancho, dizimavam a família toda, namorada incluída e, algumas vezes, até o cão. Assistíamos a tudo revoltados, mas também conscientes de que vingança seria terrível. Alguns de nós, mais inconformados com o desequilíbrio de forças, não hesitava em lançar-lhes umas quantas ameaças. «Filhos-da-puta, ides pagá-las!» E quando o Artista chegava ao local do massacre, já deserto de malfeitores, o Cine-Mar gelava com o silêncio. O pior, então, eram os enterros. Da família toda, da namorada e do cão. Este, de todos, o mais pungente, por causa da coleira que repousava sobre o montículo de areia que servia de sepultura. Nesta altura, na sala, ainda sobravam energias para um incitamento final. «Vai atrás desses cabrões e mata-os um por um!» Pedido que todos sabíamos que, lá mais para o final, seria satisfeito. Daí que a segunda parte do filme acabava com o nosso herói a treinar-se para a vingança, num qualquer local deserto, a sacar do seu Colt 45 e a atirar em tudo o que era pedregulho. Cada vez mais rápido e mais certeiro. Como todos nós lhe exigíamos.
Quando caía o «Segue Imediatamente», clone do «Intervalo» mas cinco vezes mais rápido, já poucos arriscavam ir às casas-de-banho. O gozo antecipado na viragem no enredo, parecia aliviar as bexigas da malta. Todos adivinhávamos que aquela meia hora final estaria reservada à apoteose da vingança. Do gado, do rancho, da família toda, da namorada e do cãozinho. E assim seria. Os bandidos, após mais uma olimpíada de saque e mortandade, estavam agora reunidos num novo rancho, entretanto também dizimado. Eram às dezenas, acompanhados pela sua própria trupe, mulheres incluídas. Tudo da pior estirpe, naturalmente. É a partir deste cenário que a alma dos espectadores do Cine-Mar irá iniciar a caminhada, degrau a degrau, a caminho dos céus. A câmara, até aí rastejante e a pulular entre os energúmenos, começa a subir a colina mais próxima. No cume, passa a apontar para o enorme vale deserto que se espraia defronte. Tudo a fingir passar-se, algures, no Utah ou no Colorado, mas na realidade filmado em Abruzzo. Visível, na tela, apenas um crescente novelo de poeira que se aproxima. Célere, a objectiva foca o objecto móvel, com clara intenção de tirar um grande plano. Quando o reconhecimento é feito, a geral do Cine-Mar dá um estrondo ao levantar-se como uma mola. «É ele!» A partir daqui, inicia-se o intercurso que levará ao clímax. O grande plano é agora tomado pelo trote poeirento daquela cavalgada vingadora, ao som do trompete e dos outros metais de Morricone. A vingança aproximava-se.
Alguns dos mais experientes espectadores aconselhavam calma ao pessoal da geral, que se sentava já a custo. O Artista começava a internar-se no covil dos bandidos, entretidos com a comida, a bebida, a música e as mulheres. Tudo numa fanfarronice dormente. Passam a ser atacados em surdina e, tal como alguém pedira na primeira parte, mortos um por um. Sufocados, esfaqueados ou garroteados. Só o som dos bombos, a tamborilar compassadamente, se atrevia a invadir o pesado silêncio que voltara a abater-se ali. Na tela e na sala. Tudo para não alertar os restantes bandidos. Mesmo assim, um deles, ovelha-ranhosa, solta um grito ao espernear. Os restantes rufias, já de sobreaviso, correm a transformar rapidamente o rancho num bunker. Só que isso não é obstáculo para o nosso herói. Que com estonteante rapidez e mestria no gatilho continua a eliminar os inimigos, às vezes dois por um. Também contando com a nossa ajuda, naturalmente. Como quando estava distraído a fuzilar um bandido encurralado no alpendre e não via um outro, em cima, que já o tinha em mira. Foi o aviso da malta da geral que o salvou, outra vez em uníssono. «Na chaminé!».
Nesta altura já estávamos todos de pé, com funções diferenciadas, uns a avisá-lo e outros a contar os mortos. E quando se esgotavam as balas, passava para os murros. Cujas sequências de socos continuávamos a acompanhar, em deleites de refrão. «Ah, hei! Ah, hei!» A que se seguiam aplausos dispersos. Nesta altura, já os avisos da plateia para a geral caíam em saco roto. Sem alternativas, todo o Cine-Mar ficava de pé, transformado em espelho de ringue de box, com os espectadores a golpearem o escuro da sala. Entretanto, os últimos murros do Artista ficariam reservados para o chefe da quadrilha. Que levava um valente arraial de porrada, vibrantemente aplaudido pelas testemunhas, até ficar estendido no chão, como que morto. Pelo menos, era o que todos pensávamos, nós e o Artista. Afinal, o maior dos bandidos ainda conseguia empunhar um revolver perdido no chão e apontar, pelas costas, para o nosso herói, distraído e enfraquecido pela dureza da luta. Uma última vez, gritávamos todos a plenos pulmões. «Cuidado!» Após o que o Artista sacava do punhal que trazia na dobra exterior da bota e o acertava no coração do maior mau-da-fita. Só então respirávamos, todos, de alívio. E de satisfação. Afinal, fora também com a nossa ajuda que o nosso herói havia sobrevivido a mais uma provação. Pelo que, luzes ligadas, nos entreolhávamos todos, como que mutuamente agradecendo a cooperação. (Consta que, ainda hoje, a tela do vizinho Cine-Neiva aloja o buraco de uma bala disparada por um cigano, com o que salvou o assassínio certo, pelas costas, do Artista.)
Recordo as saídas das matinées no Cine-Mar, em correrias de incontida energia e emoção e a cantarolar o musical do genérico. Quase sempre os mesmos trechos, os duetos de guitarra e violino a silvar pela pradaria e os solos de trompete a exigirem maiores acelerações ao cavalo. O Artista, num último esgar de fúria, sacudia as rédeas e partia a galope, a caminho de casa. Certamente um novo rancho, com novas casa, prado, gado, pastagens, Gaja e, quiçá, um cão. Que até poderia ser o mesmo, grande, peludo e de lambidela fácil. Afinal, a Cinecittà não é conhecida por ter um grande canil.
O Cinema é uma combinação de magia e esparguete. Julgo que sonhava com esta citação, de que não me lembrava a autoria. Quando fui acordado, no escuro, pela minha filha mais nova. Que me tinha apanhado a ressonar. No meio da matinée infantil. E que a sonoridade dos meus roncos eram perfeitamente audíveis na sala. Mesmo contando com o barulho do triturar das pipocas e do chilrear das palhinhas a esvaziar os copos de plástico. Num cinema de um Shopping. Uma vergonha.
Se ainda houver fôlego e... resistentes, sugiro mais oito minutos de pura estética western (com Henry Fonda a fazer o, suponho, único papel de mau-da-fita da sua carreira.)
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