O meu 25 de Abril mete cravos... cor-de-rosa
O João Malheiro é a minha primeira imagem do 25 de Abril de 1974. Muito antes dos Spínolas, Otelos, Vascos Gonçalves, Soares, ou Cunhais. Porque foi ele quem me deu a notícia do golpe. A mim e a tantos outros putos, entretidos numa inconsciente futebolada no recreio folhado de plátanos entre os pré-fabricados do que era a velha escola secundária de Vila do Conde. Que tinha havido uma qualquer revolução em Lisboa e andava toda a tropa aos tiros, os do exército contra os da marinha. A curiosidade, bem como o cheiro a feriado, fariam com que se formassem logo várias colunas de alunos, com o intuito de marcharem em direcção ao pavilhão da direcção da escola. Depois de alguma confusão, com alunos mais velhos, professores e funcionários a abrirem e a fecharem portas, foi comunicada a suspensão das aulas e todos fomos mandados para casa. Lembro-me de ter feito todo o caminho a choramingar, preocupado com a tal guerra em Lisboa, pois tinha um irmão na base no Alfeite. Em casa apenas me confirmariam a confusão que ia lá para baixo, avolumada pela mudez marcial que grassava na rádio.
Os dias seguintes, na escola como no País, propiciariam uma realidade vivida em doce e anárquica confusão. Os alunos, da noite para o dia, passaram a figuras centrais da escola. Horários, aulas, professores, funcionários, serviços escolares, tudo passou a ter a importância que os comités de alunos determinavam. Estes, dirigidos pelos finalistas do 5º ano, decretavam diariamente e boca-a-boca as medidas do novo poder que lhes havia caído dos céus. Há uma reunião no pavilhão. Ou há uma reunião geral na sala X. E a malta lá ia, sem sequer se preocupar se entretanto perderia alguma aula. Até porque deixou de se saber quando havia aulas. Tal como deixou de se estipular ou cumprir horários, marcar previamente datas para os testes, ou sequer ter salas de aula certas, pois que o mais provável seria estarem ocupadas por uma qualquer reunião de alunos. Nestas, muitas vezes marcadas sabe-se lá por quem, havia sempre borga pela certa. E quase sempre o João Malheiro liderava a mesa da presidência. Já aí demonstrava a verbe superior, usando um vocabulário com expressões que passamos a escutar ali muito antes de as ouvirmos nos telejornais ou nos comunicados do MFA. «Fascismo», «ditadura», «socialismo», «camarada», «eleições», «constituição», «democracia», etc. Tudo expressões que o João utilizava com grande à-vontade, mostrando que o b-a-bá dele era já diferente do de qualquer de nós. Mais tarde vim a saber que eram influências familiares, que o pai já era comunista ainda durante o tempo da ditadura. Em certa medida ele era, para mim e para alguns outros putos que ali estudavam, o nosso Otelo. Falava convictamente, com o fervor dos iluminados, soletrando uma a uma as sílabas das palavras mais complicadas e mostrava um grande empenho em discursar sobre temas que às tantas se nos tornavam incompreensíveis. De tudo isso ressaltavam as ideias das novas e grandiosas conquistas que a Revolução trazia e era urgente proteger e onde os alunos deveriam saber assumir a sua quota de responsabilidades. «O professor X é um reaccionário», «o ensino tem de ser mais progressista», «aos alunos tem de ser dada a gestão da escola», «o ensino tem de estar virado para as necessidades do aluno». A todos os slogans as reuniões gerais de alunos berravam «Acima» e «Abaixo» nas pausas dos discursos e acabava sempre tudo com apoteóticos aplausos. No dia seguinte lá faltava mais um professor.
Também por essa altura surgiu na escola a União dos Estudantes Comunistas, sendo o João Malheiro um dos animadores. Passou então a ser normal, para os putos como eu, ver os comunistas serem apresentados como dos bons, contrariamente ao que eu escutava em casa, onde ainda eram tomados assim como um bando de malfeitores. E as novidades não se ficariam por aí. Também as guerras em África, afinal, já não seriam por causa dos pretos-turras que queriam ficar com o que era nosso. Não, afinal eram movimentos de libertação legítimos, liderados por pessoas que até tinham nome (Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Samora Machel) e que apenas queriam libertar os seus povos do domínio dos opressores. Que passamos a ser nós, portugueses. Para lá da descoberta dos novos terroristas-amigos, fiquei sobretudo satisfeito por saber que não teria mais que ir combatê-los e que podia finalmente esquecer o alistamento para África, algo que sempre se temeu lá em casa. Ainda estava fresca a notícia da morte, dois meses atrás, de um primo na Guiné, interrompendo o que se previa uma carreira briosa entre o futebol e o seminário. Entretanto, devido ao aliciamento que se fazia aos mais putos e por ser o único sítio onde se podia jogar matraquilhos de graça, passei a frequentar a sede da PCP. Para entrar na secção desportiva tinha só de registar num papel o nome, a turma e o ano, embora isso não fizesse de mim um comunista, asseguraram-me. Epíteto que me interessava desmerecer por não ter dúvidas quanto à sua aceitação lá em casa. O aliciante da frequência do espaço, para além dos matraquilhos, é que havia sempre miúdas disponíveis para dialogar sobre as conquistas da revolução. O único senão seria aturar as intromissões dos camaradas que passavam o tempo a assediar a filiação no partido. Fui então obrigado a abandonar os matraquilhos da UEC, pois que a minha mesada mal dava para os extras do almoço e porque falar em reforços, lá em casa, daria direito a uma rabecada. Continuei, no entanto, a ter os mesmos sonhos nocturnos com algumas das meninas, filhas das conquistas da revolução.
No final do ano seguinte saí daquela escola e prossegui estudos noutro lado. Já só voltei a ver o João Malheiro alguns anos mais tarde, durante as idas de comboio para o Porto, eu para a faculdade e ele para a sede do PCP, de que se tornou funcionário. Cumprimentávamo-nos de vez em quando, geralmente no hall das carruagens, onde ele passava o tempo das viagens, a gastar cigarros e pensamentos certamente tão revolucionários quanto os discursos que fazia nas RGA's da escola. Uma vez assisti a uma discussão dele com um revisor da CP. Tudo por causa de um militar que andava na recruta em Lisboa e que foi apanhado a viajar sem ter o devido bilhete. O pica queria multá-lo e o João interpôs-se em defesa do feijão-frade, dando uma valenta seca ao funcionário da CP. Fez logo ali quase um comício sobre os deveres do recruta carne-para-canhão nos jogos de interesses da Pátria e por aí adiante. Fiquei com a sensação de que haveria pessoas que não mudavam, independentemente do que ocorria no mundo, por força de convicções tão fortes como as certezas. Tal como me interrogava sobre a força interior necessária para se manterem assim, militantemente convictos.
Soube que, ainda durante os anos oitenta, entrou para os quadros da rádio no Porto, onde passou a fazer relatos de jogos de futebol em directo. Mais tarde passou a fazê-lo na RTP, sendo o speaker de serviço nos jogos transmitidos do estádio do Bessa. Passei a segui-lo aí. Tinha um estilo de relato à Fernando Correia, seu colega de partido. O João não inventava nada no léxico desportivo em voga e era perfeitamente ortodoxo na utilização do linguajar do futebolês. Descrevia os lançamentos da linha lateral, os pontapés de baliza, as bolas saídas pela linha de cabeceira, os remates com o pé direito de fora da grande área, ou os cortes milimétricos dos defesas, tal como mandavam os manuais vigentes do relato desportivo. Fazia-o com o mesmo enfoque, formalismo e magnanimidade vocal que utilizava em tudo o que dizia. Com a mesma religiosidade que certamente se habituou a encontrar nos comunicados do partido.
Soube que mais tarde passou a gestor de eventos desportivos, aproveitando a presença e notoriedade dos futebolistas vilacondenses que jogavam no FC Porto da altura, André, Quim e Paulinho Santos. Consta que a notoriedade destas festas foi atraindo cada vez mais gente, incluindo modelos, gente da moda e a beautifull people do Porto. Depois daria o salto para Lisboa, onde surgiu como porta-voz da direcção do Benfica, quando Manuel Vilarinho ganhou a presidência a Vale e Azevedo. Datam desta altura os seus constantes comunicados de imprensa, que o fariam surgir nas TV's com o tom coloquial e a sapiência vermelha de sempre. O cargo permitia-lhe ter, às ordens, automóvel com motorista, porque continuava sem tirar a carta. Assisti pelas televisões à publicação da sua biografia do amigo Eusébio, com quem era visto em todo o lado e de quem falava como de um mito vivo. Datam dessa altura, também, as suas querelas nos jornais com Pinto da Costa, que chegou a apelidá-lo de «papagaio», num truculento taco-a-taco que só perderia devido aos maus resultados da equipa de futebol. Sairia do Benfica, diz-se, por imperativa e expressa decisão do treinador espanhol José António Camacho, que não lhe gabava a verbe. A última vez que dei por ele, estava ao lado de Manuel Alegre na campanha das últimas presidenciais, como membro da respectiva comissão de honra. Na próxima, quem sabe onde...
Agora, é cronista social de um mundo cor-de-rosa. Com algum cinismo, acrescentaria que a cor do mundo que porventura lhe pintaram Marx, Engels, Lenine e outros tantos. O que é verdade é que, no mundo das tertúlias televisivas, o João Malheiro continua a não dar pontapés na gramática. Utiliza, aliás, um enfoque verbal e uma histrionia gestual que fica a quilómetros de distância dos seus outros colegas comentaristas, que se calhar nem saberão o que isto seja. Enquanto nele a sapiência até parece real.
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