A memória do gosto
O gosto tem memória. Esse será, inclusivè, o seu maior valor. O da memória. Do gosto. Creio, também, que o gosto, como outros prazeres, deverá ser, convenientemente, cultivado. Apurado. Refinado. Para, assim, poder ser, devidamente, depurado.
A memória do gosto é algo que nos fica, ou vai ficando, como um sabor suspenso. Algumas vezes, desde os confins da meninice. Tenha-se gostado, ou não, do que se saboreou. Tenha-se ficado, ou não, com boa memória da eventual iguaria. Lembro-me que me deram a beber, em miúdo, óleo de fígado de bacalhau. Que servia, diziam, para dar energia aos meninos para o Inverno todo. Sorvi o primeiro gole e enojei. Sensação que permaneceria, mesmo após o receitado cross desintoxicante. Mesmo que corrido aos ziguezagues, imitando o guerrilheiro Woody Allen de «Para acabar de vez com a cultura», que assim tentara despistar um escorpião que lhe subia pelo interior das calças.
A memória desse gosto, o do óleo de fígado de bacalhau, continua, naturalmente, repulsiva para mim. Tal qual a mistela de farinha-de-pau-com-peixe que servíamos às nossas filhas, quando bebés. Mas que elas devoravam num instante, para bem dos nossos pecados. Duvido que, agora, teen-agers com as glândulas gustativas bem mais esclarecidas, se atrevessem à experiência. Talvez que denunciassem, finalmente, os progenitores à polícia. No entanto, creio que, se voltassem a ser castigadas com a mesma ementa, a memória daquele gosto certamente lhes regressaria. Não tendo de ser, forçosamente, boa, lembramo-nos, sobretudo, de um gosto que apreciamos. Daí o conforto dessa memória. Por via do gosto. E pelo prazer do reencontro de um gosto que ficou retido. Algures. Na memória.
A memória desse gosto, o do óleo de fígado de bacalhau, continua, naturalmente, repulsiva para mim. Tal qual a mistela de farinha-de-pau-com-peixe que servíamos às nossas filhas, quando bebés. Mas que elas devoravam num instante, para bem dos nossos pecados. Duvido que, agora, teen-agers com as glândulas gustativas bem mais esclarecidas, se atrevessem à experiência. Talvez que denunciassem, finalmente, os progenitores à polícia. No entanto, creio que, se voltassem a ser castigadas com a mesma ementa, a memória daquele gosto certamente lhes regressaria. Não tendo de ser, forçosamente, boa, lembramo-nos, sobretudo, de um gosto que apreciamos. Daí o conforto dessa memória. Por via do gosto. E pelo prazer do reencontro de um gosto que ficou retido. Algures. Na memória.
Tenho lido, aqui no «Prazeres do Diabo», textos fantásticos sobre experiências gastronómicas. Vulgo compêndio de gostos. Sítios idílicos, ementas fabulosas, Chef’s garbosos, contas generosas… Mas, em nenhum desses textos, percebi memórias de gostos. Peço, então, licença, para pôr mais um talher na mesa. E para relatar uma experiência, certamente bem menos cosmopolita que as dos meus colegas bloggers mas, porventura, nem por isso pior nutrida. Aliás e como bem dizia o Chef Alberto Caeiro, «…o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.»
Tudo aconteceu, há já alguns anos, no meu restaurante-do-almoço, de seu nome «Iate», em Matosinhos. Lugar de comida acelerada de todos os dias, como outros profissionais das redondezas e onde dispunha, por isso mesmo, de lugar cativo. Empoleirado ao balcão e servido em exclusivo pelo dono do local. Com entradas de pasta de atum e pãozinho de centeio, pratos fixos grandemente dependentes da oferta da Docapesca, quase sempre água a acompanhar e um cimbalino como guia-de-marcha até ao dia seguinte. Ou seja, um banalíssimo quadro restaurativo, a não merecer mais do que a classificação «honesto» no billboard de um Quitério qualquer. Classificação provisória, pois estou convencido de que, se revelasse que o dono do restaurante usava capachinho, teria tendência para piorar. O que nem será o caso deste relato, que só melhorará por passar, então, por cima das referências ao habitual relambório da amesentação, toalhas, talheres, garrafeira, candelabros, menus, prostres, eventual enquadramento paisagístico, quiçá dos vizinhos ilustres da mesa do lado, etc.
Tudo aconteceu, há já alguns anos, no meu restaurante-do-almoço, de seu nome «Iate», em Matosinhos. Lugar de comida acelerada de todos os dias, como outros profissionais das redondezas e onde dispunha, por isso mesmo, de lugar cativo. Empoleirado ao balcão e servido em exclusivo pelo dono do local. Com entradas de pasta de atum e pãozinho de centeio, pratos fixos grandemente dependentes da oferta da Docapesca, quase sempre água a acompanhar e um cimbalino como guia-de-marcha até ao dia seguinte. Ou seja, um banalíssimo quadro restaurativo, a não merecer mais do que a classificação «honesto» no billboard de um Quitério qualquer. Classificação provisória, pois estou convencido de que, se revelasse que o dono do restaurante usava capachinho, teria tendência para piorar. O que nem será o caso deste relato, que só melhorará por passar, então, por cima das referências ao habitual relambório da amesentação, toalhas, talheres, garrafeira, candelabros, menus, prostres, eventual enquadramento paisagístico, quiçá dos vizinhos ilustres da mesa do lado, etc.
Naquele dia e certamente que entre duas conversas sobre temas tão estafados como futebol, política e, outra vez, futebol, pedi algo de que não me lembrava de ver, habitualmente, na ementa. Daí ter saído qualquer coisa do género: «Ora vamos lá então experimentar essas lulas recheadas». Não sei se «à moda» de algum sítio, ou autor, ambos obrigatoriamente com nome castiço. Eventualmente, se por default, «à moda da casa». O que sei é que, quando ataquei o primeiro recheio, não senti qualquer toque. Bem se vê, ainda mastigava a primeira batatinha, enlameada num molho com sabor a vinagrete. O vinho, branco como Santa Marta, também terá ajudado a manter clandestinas as primeiras pistas. Tal como a pergunta do dono, no modo alheado de quem não espera a resposta. «Tá bom?» Ao segundo ataque, a coisa começou a dar sinal. As glândulas gustativas como que ergueram os periscópios e passaram a traduzir a informação. Cominhos, alguns fios de tomate com pele, cebola muito picada, talvez pimento e, de certeza, as perninhas das lulas, tudo embrulhado no refogado. Isto era o recheio das ditas. Que, por sua vez, nadavam numa pequena poça de azeite, vinagrete e tomate. Aos poucos, aquele cocktail de sabores fez rebentar-me na memória a imagem de jantares junto à porta do forno e de cheiros da madeira a queimar. Também da lembrança de outras tantas coisas, inicialmente difusas e mais nítidas a cada nova garfada. Rostos, sussurros, odores, calores, contos, conversas. Tudo a desenrolar-se num ambiente de lusco-fusco, com pavios de velas e carvão a crepitar. Num pleno conforto da memória. Daquele gosto a lulas, assim também recheadas, feitas pela minha avó, quase trinta anos antes. Uma memória que eu não sabia que ainda tinha. Já não apenas da comida ou do sabor, mas da lembrança de uma idade de que não julgava ainda poder lembrar-me. Confesso que tudo aquilo me emocionou.
Saboreei o prato, vagarosamente, em clima de autêntica levitação. Aquele gosto, mais a memória daquele gosto, davam-me uma paz e um conforto de que eu tinha dificuldades, ainda, em reconhecer. Durante largos e reconfortantes minutos, fiquei ali a remexer nos talheres da minha própria memória. Estranhamente aberta a um passado que se revelara naquele almoço. Paguei, mudo, a conta e saí quase a correr. A meio caminho entre a euforia e o espanto.
Nunca mais saboreei, desde então, lulas tão saborosamente recheadas quanto aquelas. Em lado nenhum. Nem sequer no «Iate», que nunca mais as voltou a pôr na lista, durante o pouco tempo que ainda abanquei almoços por aqueles lados. Há tempos, passada já uma boa meia dúzia de anos sobre aquele almoço, voltei a passar por lá. E tornei a empoleirar-me no balcão. Donde se vêem alguns espaços da cozinha. Depois daquele sortilégio, fiquei a pensar na coincidência do prato ser confeccionado exactamente da mesma forma como a minha avó o fazia. Também ela natural de Matosinhos. Dada a coincidência, alguém da mesma escola culinária? Alguém na vizinhança dos mesmos saberes? Naturalmente, esta pergunta havia-me perseguido durante algum desse tempo. E eu arriscara a resposta, afirmativa, como quem revela um segredo a si mesmo. Quando o dono acabou de me servir, reparei que coçou a careca antes de guardar a travessa no rebordo do balcão. Só nessa altura verifiquei que o homem havia, entretanto, assumido a calvície. Aproveitei para o questionar sobre as outras novidades do restaurante. Respondeu-me com as obras na cozinha, uma nova cozinheira e o refrescamento na ementa. «Temos que mudar para que os clientes não se fartem do mesmo!» Perguntei-lhe, então, pelas lulas recheadas. Que já não faziam, que havia agora uma cozinheira que não gostava de fazer aquele prato. Finalmente, que os clientes gostam de ementas «à base de novidades». Enfiei os olhos no peixe grelhado trazido da Docapesca e pus-me a pensar no que acabara de ouvir. E concluí que há momentos na vida de um freguês que nenhum capachinho alguma vez poderá entender…
Saboreei o prato, vagarosamente, em clima de autêntica levitação. Aquele gosto, mais a memória daquele gosto, davam-me uma paz e um conforto de que eu tinha dificuldades, ainda, em reconhecer. Durante largos e reconfortantes minutos, fiquei ali a remexer nos talheres da minha própria memória. Estranhamente aberta a um passado que se revelara naquele almoço. Paguei, mudo, a conta e saí quase a correr. A meio caminho entre a euforia e o espanto.
Nunca mais saboreei, desde então, lulas tão saborosamente recheadas quanto aquelas. Em lado nenhum. Nem sequer no «Iate», que nunca mais as voltou a pôr na lista, durante o pouco tempo que ainda abanquei almoços por aqueles lados. Há tempos, passada já uma boa meia dúzia de anos sobre aquele almoço, voltei a passar por lá. E tornei a empoleirar-me no balcão. Donde se vêem alguns espaços da cozinha. Depois daquele sortilégio, fiquei a pensar na coincidência do prato ser confeccionado exactamente da mesma forma como a minha avó o fazia. Também ela natural de Matosinhos. Dada a coincidência, alguém da mesma escola culinária? Alguém na vizinhança dos mesmos saberes? Naturalmente, esta pergunta havia-me perseguido durante algum desse tempo. E eu arriscara a resposta, afirmativa, como quem revela um segredo a si mesmo. Quando o dono acabou de me servir, reparei que coçou a careca antes de guardar a travessa no rebordo do balcão. Só nessa altura verifiquei que o homem havia, entretanto, assumido a calvície. Aproveitei para o questionar sobre as outras novidades do restaurante. Respondeu-me com as obras na cozinha, uma nova cozinheira e o refrescamento na ementa. «Temos que mudar para que os clientes não se fartem do mesmo!» Perguntei-lhe, então, pelas lulas recheadas. Que já não faziam, que havia agora uma cozinheira que não gostava de fazer aquele prato. Finalmente, que os clientes gostam de ementas «à base de novidades». Enfiei os olhos no peixe grelhado trazido da Docapesca e pus-me a pensar no que acabara de ouvir. E concluí que há momentos na vida de um freguês que nenhum capachinho alguma vez poderá entender…
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