Quando me ligaram para saber da minha disponibilidade para uma reunião em Londres, logo me lembrei do «Prazeres do Diabo» e da possibilidade de poder melhorar enfim a minha fraquíssima prestação no blogue, até aqui praticamente reduzida à leitura atenta e fisicamente curvada das postas do FVaz, o que historicamente me tem provocado fortes dores nos cotovelos. De todo o modo, considero que a minha fraca performance, que o amor-próprio e o pudor me obrigam a jurar que nada tem a ver com uma eventual falta de prazeres reportáveis, será mais por culpa do próprio anfitrião, que tem elevado a hebdomadária fasquia para podiuns pouco consentâneos com o olimpismo em que venho vivendo. Aliás, já por diversas vezes tive a tentação de fechar postas sobre o que julgava prazeres, se não do diabo pelo menos de um seu esforçado discípulo, mas logo as reduziria a tirinhas ante a leitura das façanhas do incorrigível nómada FVaz e mais as suas invejadas fotos e descrições sobre viagens, hotéis, praias, culinárias, etc., contra as quais pouco ou nenhum interesse teriam decerto as minhas próprias descrições, por exemplo, dos cardápios servidos pela Wagon Lit durante as recentes investidas que fiz a Lisboa no Alfa Pendular.
Daí que a minha resposta aquela chamada vinda de Londres não poderia deixar de ser um «Yes, of course!», até porque as viagens e o hotel seriam pagas. Então, embora sem qualquer ilusão de me aproximar do diabólico estatuto do anfitrião deste blogue, nem que tivesse mais cinco vidas, preparei-me para que o relato desta minha visita a Londres pudesse ser um up-the-bottom capaz de atenuar o meu déficit blogueiro. Afinal, ia passar a noite num hotel da cadeia Hilton, o que era um sonho vedado, por exemplo, à própria herdeira dos accionistas que por essa altura cumpria pena numa outra cadeia, decerto bem menos pleasant, em Los Angeles.
O voo Porto-Londres foi rápido, a sandwich do catering tinha a frugalidade do costume e Heathrow assemelhava-se a um templo invadido por fariseus de todos os credos e raças. As enormes fila que se formavam para o check-out, terrorismo oblige, assemelhavam-se mais a spas de sovaqueira. Após a saída, umas duas dezenas de indivíduos de fato, gravata e cara de choffeurs anunciavam, em cartolinas coloridas com o logotipo e o nome de bancos e outras empresas, os nomes das pessoas de quem tinham ordens para recolher. Numa primeira vistoria, não dei com o meu caddie. Só na segunda vigília consegui descortinar o meu nome, bem como o apelido, por sinal ainda menos british do que já eram, decerto escritos por mão de médico e disformemente repartidos por três linhas numa folha A4. Lá seguimos para o hotel, comigo atrás do local onde deveria estar o condutor, que por aquelas bandas tem o estranho hábito de se refugiar no lugar do morto. Pelo caminho, ainda tentei testar o meu inglês para a entrevista do dia seguinte, mas logo acabei por desmoralizar quando percebi que o motorista, para além de gago, era escocês. Depois de andar uma porrada de tempo às voltas, verifiquei que as duas horas do voo do Porto seriam ultrapassadas pelo tempo gasto nos 60km desde o aeroporto de Heathrow até ao centro de Londres. O que era, em parte, consequência de ter lá aterrado no próprio dia em que era inaugurada em solo inglês mais uma edição da Volta à França em bicicleta. A outra parte, como eu já desconfiava, era porque o taxista já não ia para aqueles lados há dois anos e pico. «Goo-goo-goo-good Lord», confessaria ele na sua gaguez dos Highlands, ao ver o milésimo sinal de trânsito proibido. O único remédio seria então o de passar a confiar que o GPS do carro fosse mais íntimo da City londrina. E foi-o, porque logo de seguida chegamos ao hotel, ia já para as 21h30m. Ou seja, não havia qualquer hipótese, contrariamente às ordens que trazia de casa das minhas teen-agers, de caçar «pelo menos uma foto do Big Ben». O Ritz Hotel de Canary Wharf, que me surgiu sem estrelas, mais parecia transplantado de Bombaim. Logo à entrada, antes até de me poder abeirar da recepção, uma vaga de indianos devidamente paramentados aguardava a entrada para uma sala lateral, donde provinha um barulho ensurdecedor do que me pareceu ser house music à moda de Gujaratti. Soube depois que todas as quartas-feiras havia ali uma muito concorrida indian jam session. Todo o hotel apresentava um ar igualmente exótico, a começar pelas recepcionistas, todas africanas, indianas, ou mestiças, nenhuma que saísse à patroa Paris. No check-in, entretanto, mais uma desgraça: não havia qualquer reserva no meu nome. Não pode ser. Tornei o espaço logo mais ecuménico, acrescentando o portuguesíssimo «bora lá ver isso outra vez!» Não resultou. Estava mesmo sem reserva. Pior que isso, só havia um quarto disponível para aquela noite, pelo que logo me antevi no último do rés-do-chão, nas traseiras do hotel e com vista para os bidons do lixo a reciclar. Disseram-me que tinha de decidir de imediato, o que queria dizer ficar e pagá-lo logo, porque aquela hora a empresa-anfitriã já teria as portas fechadas. O anúncio do preço do quarto, no entanto, tornar-me-ia mais combativo. Liguei para o telemóvel da senhora que me havia marcado tudo. Que não percebia como falhara a reserva do quarto, que maçada, tinha pena, mas que estava a começar a jantar. Mal percebi a balda, servi-lhe a recepcionista como sobremesa. Depois de uma renitente troca de talheres maxilares, esta anunciou-me que o assunto seria resolvido no dia seguinte pelos seus clientes. Boa. «Have a pleasant dream, sir.» Bora lá então a arrastar a mala para o quarto das traseiras. Que era, afinal no 15º andar e tinha uma vista para a City, um paraíso para os fanáticos dos arranha-céus cobertos por muito vidro e ainda mais aço. Como estava a chover, a noite londrina parecia breu e poucas eram as janelas com luzes, não tive oportunidade de fazer um primeiro boneco aqui para o blog. Encontraria depois um no Google, que é o que encima esta posta. Quanto à culinária hoteleira, a sandwich, o leite e a maçã que havia trazido de casa revelaram-se um jantar frugal e adequado às circunstâncias, pelo que me inibirei de aduzir mais pormenores sobre a sua degustação. Depois de um duche rápido e de, como habitualmente, guardar de seguida todos os souvenirs que encontrei no quarto, fiquei na cama a acompanhar alguns dos canais locais. Dada a monotonia das notícias sobre cricket, mesmo que a cavalo, mais o facto de ter uma reunião marcada para as 9h00m do dia seguinte decidi-me por visitar logo Hipnos.
No dia seguinte, às 07h45m, já estava abancado na breakfast room do hotel, disposto a recolher todas as preciosidades culinárias que me fosse possível convocar depois para o blogue. Tarefa algo limitada pelo facto de eu há muito considerar que o tipical pequeno-almoço inglês é perfeitamente enjoativo e muito mais quando alguém se esquece de fechar as tampas dos recipientes onde eles destilam as suas salsichas, o bacon e os ovos mexidos. Nessa manhã pude verificar, mais uma vez, a falta de consenso do meu gosto, ao olhar para a bicha de ingleses, escoceses, galeses, irlandeses, chineses, indianos, quenianos e mauberes que militantemente abarrotavam os pratos daquelas gorduras. No outro lado da sala, lembro-me de ter visto levantar-se em direcção aos bacon & eggs, um indivíduo que deixou na mesa três pratos com queijo e fiambre, vários pacotes de geleia, dois croissants, uma taça cheia de salada de frutas, um copo com um sumo de laranja e outro com outro sumo qualquer e duas chávenas de café com leite, que eu desconfiei logo que só poderia ser um nosso conterrâneo. Como é sobejamente conhecido, a noção que um português tem de um pequeno-almoço num hotel é a de dever comer tudo o que estiver incluído no preço.
Como tinha reunião marcada para as nove, que na Inglaterra significa ser mesmo às nove horas e não tendo nada a ver com o nosso «em ponto», que em Portugal quer dizer «lá para as 9 e meia, dez menos um quarto» ou como o «mais ou menos às 9», que quer dizer que «tanto pode começar às 10 como às 11 mas pelo sim pelo não apareça amanhã de manhã bem cedinho», saí dali mal acabei a minha segunda meia-de-leite. À porta do hotel decidi pedir a uma waitress que me indicasse o caminho mais rápido para chegar ao meu destino. Não que eu não o soubesse, o caminho, mas porque aquela era a primeira mulher branca e loira, bonita, trully british, que eu encontrava desde que chegara a Londres. Acompanhou-me e à minha mala até ao exterior do hotel e apontou o punho aberto na direcção do edifício alto que distava uns trezentos metros de nós. Na verdade eu não estava a prestar atenção às suas indicações de trânsito para peões, mas antes a lembrar-me de um velho dito de Hitchcock, que dizia preferir para actrizes as loiras inglesas às morenas italianas porque, segundo ele, as últimas traziam «a palavra sexo escrita na cara». E para os que, como eu, não percebiam donde vinha o mal ao mundo, acrescentava que as loirinhas inglesas, com aquele seu ar de austeras professoras primárias, seriam até bem capazes de abrir a braguilha a um desconhecido que viajasse com elas num táxi. «Well, have a good luck, sir», despediu-se-me ela a meio das minhas cogitações. Pelo que lá tive de ir à minha vida. O resto do dia acabaria por não ser especialmente interessante e não apenas por terem faltado pedidos de boleia durante o percurso do taxi que me colocou directamente no aeroporto, onde cheguei mesmo a tempo de usufruir de mais um malcheiroso spa, que por aqui ainda há quem insista em chamar check-in. No final do dia, já chegado ao Porto, muito duvidei que trouxesse matéria para poder postar com alguma decência e muito menos com o nível das habituais experiências turísticas descritas pelo FVaz.
Uns dias depois, voltaram a ligar-me para questionar sobre a disponibilidade para uma nova reunião. Como vi logo ali nova oportunidade para enriquecer finalmente a minha postagem, aceitei de imediato. E lá fui eu enfiar-me na mesma viagem Porto-Londres, roer a mesma sandes do catering e encontrar os mesmos fariseus de Heathrow. O caddie, entretanto, era outro. Mesmo que insistisse em continuar a chamar nomes ao meu apelido familiar. Era cockney e tinha orgulho em ser motorista de estrelas. Não se referia a mim, claro, mas aos actores Michael Caine e Liam Neeson, pelo que, no final da viagem, passei a saber mais umas coisas sobre algumas das loucuras que as celebridades confessam nos táxis. O hotel, desta vez, era outro, o Marriott, ainda em Canary Wharf. «Sorry for all inconvenience», haviam-me dito quando se me despediram na reunião anterior. Entusiasmado ainda pelas histórias que acabara de ouvir sobre as estrelas de Hollywood, entrei confiante de que desta vez tudo seria diferente. Quem sabe se até não entraria na divisão seguinte do campeonato dos clientes de hoteis. E, para primeira impressão, não estava mal. Muito embora tivesse que agarrar bem na minha mala para evitar que o waiter que correu para mim vestido de smoking, camisola vermelha com uma risca amarela e chapéu de coco me pudesse reivindicar uma gorjeta em libras. Moeda que eu assumidamente não transportava por ter evitado pagar outra gorjeta a um chinês que mas queria vender numa exchange house no aeroporto. Mal percebeu que eu podia com dez vezes mais o peso daquela mala, indicou-me logo o caminho da recepção no cimo das escadas. Enquanto revistava o meu passaporte, um circunspecto recepcionista, indiano, pareceu animar-se com a minha nacionalidade. E decidiu apresentar-se. Que era de Goa, de uma família goesa tradicional e que por conseguinte os portugueses eram por ali muito conhecidos e falados. Confortado com as lembranças da nossa gloriosa História, perguntei-lhe se sabia falar português. Respondeu-me que não, ou melhor, que só conhecia uma palavra, que quereria dizer «love». E disse «adeus». Lá o corrigi, algo decepcionado com a súbita consciência de que as nossas falhas nos manuais escolares seriam igualmente ancestrais, impossibilitando que não se tivesse plantado, pelo menos, uma palavra da língua de Camões num desses novos mundos que descobrimos para o mundo. Depois viria a pior parte. Tinha de pagar já o quarto e esperar ser reembolsado depois pela empresa-anfitriã pois essas seriam as condições negociadas. Perante tamanha precisão, ainda por cima vinda de um ex-patrício, não tive outro remédio senão entregar-lhe o meu tímido e carente cartão de crédito, ao mesmo tempo que tentava esquecer as correspondentes duas perdas cambiais, mais as comissões e as outras despesas que o meu banco certamente não se esqueceria de cobrar. Depois desta nítida entrada no blogue errado, qual «Desprazeres do Diabo», despedi-me do jovem museu-vivo do nosso antigo império, que pareceu felicíssimo ao retribuir, na língua que antes atraiçoara, o meu «obrigado». Subi ao quarto, no 5º piso, esperançado numa noite calma.
O quarto era igual a todos os quartos dos bons hotéis: cómodo, completo e higienicamente decente. Este, com uma decoração cheia de reminiscências indianas, tinha cerca de uma dúzia de almofadas e travesseiros na cama, o que me fez pensar nos hábitos poligâmicos daquela saudável cultura. Na toilette, reparei logo nas lindas e vaporosas linhas eco de sabonetes e shampoos e numa série de óleos corporais e capilares, que forrariam muito bem a minha mala à saída. A novidade estava, entretanto, no frigo-bar. Que verifiquei encontrar-se carregado de tabletes de chocolate, biscoitos, amendoins, uma longa lista de mini bebidas, cervejas e sumos e com uma aviso que só li no final da revista. «Fica o cliente avisado que temos um sistema computarizado e que qualquer bebida em que mexa ser-lhe-á logo facturada». Por momentos fiquei preocupado que o som do fecho da geleira tivesse acordado os vizinhos. Decidi espreitar as vistas da janela. E comecei por não gostar nada de verificar que ficava a uns meros três ou quatro metros de distância, na horizontal, de uma estação suspensa do Metro. Interroguei-me como fora possível construir uma coisas daquelas ao nível de um 5º andar. Ou o contrário. Daí a pouco, com o barulho da chegada de uma composição, apercebi-me de que os vidros do hotel, tal como a caixilharia das janelas, não eram duplos. E que com o comboio a passar ali mesmo ao lado da cama onde repousava a dúzia de almofadas, haveria que temer o pior. Depois do duche, lá tornei a refastelar-me com o jantar mais uma vez cozinhado e trazido da lusa-Pátria, pois que sou dos que acham que em gourmet que não empata não se mexe. Depois de mais uma marcação cerrada pelos canais que a nossa TV Cabo não tem mas não se perde nada com isso, lembrei-me da reunião das 09h00m do dia seguinte e decidi-me a entrar nos braços da Hipnas, a inexistente mas certamente mais gostosa versão feminina do deus grego do sono.
Nessa noite, porém, bem menos que pela novidade desta nova e platónica relação que pelo barulho das chegadas e partidas dos comboios no vizinho Metro, não consegui pregar olho. Pelo que, de manhã, apenas um reforçado duche inglês me permitiria arranjar forças para descer para o pequeno-almoço. Enquanto devorava a minha salada de frutas, o pãozinho com manteiga e as duas meias-de-leite, a segunda mais meia-de-café, não pude deixar de verificar que a ONU da bicha para as tiras de porco fumado continuava forte. E de como os pequeninos asiáticos, principalmente, devoravam aquilo tudo com a sofreguidão de quem está convencido de que regressará da Europa cinco centímetro mais alto do que quando saiu de casa. Entretanto, desta vez não notei que estivesse por ali qualquer português a açambarcar o menu. Antes de abandonar o hotel, ainda na recepção, tentei ver se lá encontrava o goês da noite anterior, a quem eu fazia questão de ensinar a decorar a expressão portuguesa «falta de sono», estando igualmente decidido a soletrá-la de um modo que ele a entendesse como «shit». Como já não estava, praguejei de fininho e atirei-me à City.
Durante os intervalos das reuniões desse dia, surripiei o máximo que pude do café disponível, de modo a rechaçar as ondas de sono e os ruídos dos combóios que insistiam em me atacar em pleno dia. No regresso a casa, já no avião, vários pensamentos se me entrecruzaram. Dentre eles, a sensação de que o que trouxera de Londres era afinal matéria sofrível quando comparada com a solidez das mafarricas postas que o FVaz vem registando. Mas depois, pensando melhor, concluí que aprendera afinal duas coisas. Primeiro, que os cinco minutos que medeiam entre cada viagem dos combóios do Metro de Londres mostram que os seus habitantes estarão bem servidos. Segundo, que os conquistadores portugueses de antanho deverão ter feito muitas patifarias lá pelos lados de Goa.